sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

INVENTO POR RENATO TORRES 2

ALGUM MAR (CANTAR)

Renato Torres e Edyr Gaya

Por que cantar?
Pra ficar perto de um certo intuito,
Ser muito e tudo, e nada mais desperdiçar. 
Juntar o que despedaçar

E ir ao fundo, ao nó do medo.
Abrir o jogo e atear fogo
Ao pé do ouvido, até o sentido
Se purificar (modificar).

Parir saudades, dourar momentos,
Vontades soltas pelo vento, um novo ar,
Por um segundo segurar no canto
O mundo, onde vai sossegar
O impulso irresistível de sonhar.

Pra encontrar
O que não tenho, de onde venho,
Ter o desenho precioso do que sou,
Ousar ouvir, na minha voz,
Algo mais do que palavras vãs.
Algum mar fundo o bastante
Pra se mergulhar.
A canção fala da funcionalidade da arte de cantar (Por que cantar?). O que há nesta ação de tão verbal? A letra joga com a recorrência sonora entre “intuito” e “muito”, para falar de “um certo intuito” que intensifica o ser; cria a antítese tudo/nada, para indicar as possibilidades infinitas do ser e o que não pode mais ser desperdiçado. Lembro-me de Renato Russo: “Descompasso e desperdício herdeiros são agora da virtude que perdemos”.
 A canção de Torres e Gaya cria também uma recorrência sonora da raiz de “despir”, para se referir ao desperdício, que cessa ao canto, e à antiação de despedaçar, para se referir à função recompositora do canto.
 A função do canto é mesmo ir ao fundo, desatar o nó do medo, abrir o jogo e atear fogo ao pé do ouvido, até o sentido se purificar. Os artistas paraenses precisam se unir num grande mutirão contra tecno-brega e coisas do... Como diria? Gênero? Bem, desculpem-me, mas, em se tratando de arte, o que eu entendo por gênero é outra coisa que não me permite relacioná-la ao que a indústria “cultural” (entre aspas porque cultural também é outra coisa) quer porque quer difundir como “coisa nossa”. Deus me livre!
 O Pará tem cantores e compositores maravilhosos, gente que escreve letras de verdade, verdadeiros poemas cheios de sintaxe bem elaborada, configurações formais e sonoras edificadas sobre o que há de mais potencialmente significativo no vocabulário nortista. Temos também gente muito capaz de compor ritmos e melodias genuínas, que superam quantitativa e qualitativamente essas porcarias que tocam nas rádios populares, nas festas de aparelhagem e nesses malditos celulares que alguns desprovidos de senso de vida em comum ouvem nos coletivos de Belém. Sinceramente, fico com pena dessas pessoas que ostentam seus atestados de vítimas do sistema com tanta inconsciência e orgulho. Dá vontade de puxar uma carteira escolar e dizer: “Agora senta aqui, meu filho, que eu vou primeiro te ensinar o que é música de verdade, pra depois tu te iniciares em música paraense”.
 A música – Atenção! Eu disse M Ú S I C A. Não qualquer barulhinho repetido com gemidos fanhosos e roucos disfarçados de canto – faz mesmo parir saudades. Sim, meus caros, porque, em arte, o verbo “parir” também se completa com qualquer palavra que a gente queira. Assim como o verbo “dourar” pode ter a palavra “momento” como objeto e, assim, construir um significado que desafia a inteligência humana, porque foge do corriqueiro, do banal, do usual, do que tu já sabes... É a poesia quem satisfaz a tua necessidade do novo, quem te salva dessa mesmice em que te querem os sujeitos das tenebrosas transações a que se referira Chico Buarque em “Vai Passar”. O que é isso? Pára de fuçar a vida dos outros nesse orkut, sai desse twitter, desconecta esse msn e vai procurar saber o que todo mundo que tem o mínimo de cultura letrada neste país já sabe.

Estamos cada vez mais castrados pelos imperativos deste sistema de produção capitalista que, não porque virou uma ordem mundial, vai governar meu juízo de gosto. Meu infinito particular não tem que necessariamente aderir a tudo o que este maldito sistema... Cria? Criação pra mim também é outra coisa.

Nossas vontades estão de fato soltas ao vento, e o canto pode ser mesmo este lugar que reúne o disperso, ajuda-nos a organizar as ideias e nos devolve o sonho, faz-nos encontrar o que não temos, entender nossas origens, delinear nosso ser, imprimir algum mar à voz já condicionada a palavras vãs. 

Explorando possibilidades rítmicas e visuais, Sônia Nascimento goza de um privilégio de poucos artistas brasileiros, fazer sucesso cantando o que gosta, o que a emociona. Ao longo de sua vida de estudante, Sônia participou de vários festivais e apresentações internas no colégio e na universidade, onde chegou a cursar até o terceiro ano de Medicina Veterinária. Depois passou a se apresentar na noite com vários músicos paraenses. Fez teatro, onde trabalhou com Cacá de Carvalho. Estudou canto com o maestro Adellermo Mattos, que a aconselhou a se dedicar ao canto lírico. Mas ela, por ser amante da MPB, preferiu o popular ao erudito, embora o rigor artístico empregado em Invento não lhe tire o mérito da erudição.
 Depois de haver montado um show em homenagem a Noel Rosa, produzido por Cláudio La Roque, Sônia uniu-se aos integrantes da banda Moonshadow, que misturavam música, teatro e poesia. Uniram MPB com Rock e montaram a banda Jardim Elétrico, em janeiro de 1995. Em agosto do mesmo ano, a banda se desfez. Logo a seguir surgiu a Florbella Spanka, com a mesma sonoridade do antigo trabalho e a voz de Sônia Nascimento.
 Infelizmente não disponho de espaço para comentar aqui toda a fortuna literária das letras de Invento. Mas, só para deixá-los com água na boca, olhem esta frase: “O sangue não se torna água”. Esta negação metafórica ou este anti-milagre que evoca um realismo possível na música paraense, em contexto otimista, faz parte da literariedade das canções do repertório de Invento.
 Leiam o que escreveu Mariano Klautau Filho sobre  Invento

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